sexta-feira, 28 de junho de 2013

Uma mulher


Acordou tarde como sempre. O prazer gosta mais da noite do que do dia. O sol  já rasgava o quarto. Mais um dia, mais um dia...Chinelo, xixi, rosto e água na chaleira. Apito, pó, caneca e o café batendo no estômago.  Na televisão não se falava em outra coisa: o povo acordou.  Ela achava bonito ver toda essa gente reunida, mas ainda lhe faltava coragem. Tinha até vergonha de dizer isso para as outras meninas que participavam de todos os protestos, disfarçadas é claro. Mas a noite de ontem tinha sido muito boa, e ela acordou se sentindo mais mulher. Decidiu ir. 
A hora passou voando cheia de expectativas. O povo ia encher a Presidente Vargas. Tudo combinado com as meninas. Depois da passeata elas iriam passar na casa da Nicole e de lá direto para a boite. Roupa discreta, pouca maquiagem, um brinco delicado e desceu as escadas deixando aquele cheiro doce de creme hidratante no ar. 
Elas se encontraram em frente à Candelária,  chamando a atenção dos homens.  Seguiram andando em direção à prefeitura e viram muita coisa bonita. Família, namorados e até gente de idade. A Vanessa levou um cartaz: mais amor, por favor. Viu alguns caras conhecidos que viraram o rosto disfarçando. Mas não se importou. Ela estava feliz, chegou a chorar de alegria.
A noite foi chegando disfarçada entre gritos de protesto e  holofotes de helicópteros sem que elas percebessem. Estavam em êxtase. De repente, as pessoas começaram a ficar mais agitadas. Uns moleques quebraram um ponto de ônibus e ela quase partiu pra cima deles. Tudo virou confusão e correria. Fugiram pela Regente Feijó, mas foram encurraladas junto com uns garotos por uma tropa de 12 policiais. Era tanta fumaça de gás que mal dava pra abrir os olhos. Aquilo rasgava a garganta e abafava qualquer grito. Levaram muito tapa na cara, e até protegeram o tal grupo de meninos. Todas ali já estavam muito acostumadas a lidar com homem valente. Depois foram embora. Humilhadas e de alma ferida.
Essa noite não conseguiu trabalhar. Foi pra casa e quis nunca mais sair de lá.  Mas não tinha jeito. Amanhã voltaria a vida normal. A fumaça seria a dos cigarros e outros gritos ficariam abafados. Tinha que trabalhar e aproveitar para fazer um dinheiro maior. Fazer o que? Em época de crise os puteiros sempre ficavam mais cheios. 

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