quinta-feira, 16 de julho de 2015

Maria Rosa, a catalã

 
 
   Fecha os olhos devagar. Não podia ser diferente. Vai virar estrela, pó de constelação, lembrança de luz. Há quem diga que você foi brava. Há quem diga que severa. Pouco te conheci, é verdade, mas nunca vi isso. Há leões que gritam mais de medo que de ódio. Para mim sempre foi um sorriso, largo e surpreso de quem se entrega à alegria. E com que felicidade de criança você me mostrava sua delicada e dedicada coleção de colheritas, de cachimbos, de xicarazinhas tão finas e frágeis que pareciam poder quebrar com qualquer vento mais forte que entrasse pela janela. Como você. 
Gavetas e gavetas, portas e portas de armário, cheios de saudades, de memórias, que tinham alí seus lugares marcados, na tradição de lembrar-se feliz.A eterna dor de ver no rosto do Cristo Redentor a figura do teu filho. E que beleza poder ver tudo isso com o amor de um neto, que nada tinha de neto, senão o afeto. Bilhetes trocados no mais fino papel em que contávamos amenidades meio sem sentido, separadas por oceano de distância e uma empatia sem explicação. Eram palavras de presença, um jeito de mostrar carinho e nada mais. Lembra da Sardaña? Da Orciatta? e da gargalhada suspensa no ar quando te chamei de "Abuelita"? 

    E hoje  de você, guardo o mais delicado cachimbo. Guardo as cartas que trocavamos na inocência de amigos com mais de meio século de diferença. Guardo a lembrança do brilho dos seus sorrisos. Guardo a sua luz de estrela brilhando fininha pra sempre no meu céu. 

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Era uma casa muito engraçada...


Eu acho até meio estranho te chamar de primo. A gente tá junto desde quando eu nem sabia o que era contar o tempo. Sempre fomos os mais novos e com isso tivemos todas as mordomias e todos os prejuízos desse posto. Mas quando eu paro pra pensar, faço a conta de quanta coisa boa a gente viveu junto. E perco a conta. É tanta neurose de lençol esticado, picolé de férias que explodia na boca, orelha dobrada pra dentro, Lorena, digo, Cassandra Lorena...

Aí junta tombo no Caraça com epilepsia de poodle, copo espalhado pela casa com o Rock in Rio que você não foi, e com aquele Beto Carreiro que eu não fui. Têm Ronco de rinite, unhada de irmã, revista de sacanagem, e aquele filho da puta do Brucutu que levou o meu cinto.  A sinuqueira, o bet sec, a lasanha da Mèmè e aquele “andamos todos iguais” de Arraial D’ajuda. Eu tô nessa nostalgia e olha que eu nem bebi quatro doses ein!

Eu ainda sinto o cheiro da fábrica de biscoito de Valadares... sinto o frio da barriga daquele dia do “Tobogã” que teu pai foi tão rápido que batemos com a cabeça no teto do carro. Lembro da gente tentando ouvir mensagens extraterrestres no rádio dele.  E a festa de formatura da Issa?

É tanta coisa que vem na cabeça que sei lá... as vezes dá vontade de voltar no tempo e viver tudo de novo. Fazer planos de uma casa muito louca onde todos nós moraríamos juntos, e onde cada cômodo teria a cara do seu dono. Me lembro da minha passagem secreta, sempre quis uma casa com passagem secreta. Ou então, largar tudo e ir viver em Itajaí, que é longe daqui, mas os médicos e doutores... sem falar nos advogados.


Pronto, me perdi. Mas hoje se eu paro pra lembrar esse monte de coisas é só pra ter a certeza de que vamos ter muitas outras pra viver.  Não sei contar a história da minha vida sem passar por você e por vocês meus primos. E se hoje, a gente se olhar no espelho e ver um adulto, uma pessoa séria, cheia de responsabilidades e medos, possamos nos lembrar da alegria que era a chegada das férias.  

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Mão de faca


Não sei da história, mas tenho certeza de que o parto foi sofrido. Não pode ter outra explicação essa fome de vida. Imagino também a primeira vez que viu o mundo: olhos bem pretos e arregalados. Nascia negro, mão de faca, insolente e carinhoso. Cresceu no meio do mato e no coração da cidade. Foi moleque no terreiro e no asfalto. Canela fina, sempre tinha resposta pra tudo, nem que inventasse, nem que enrolasse, nem que gargalhasse. Desde cedo, soube o que é ter destino e aprendeu no tocar do tambor o que nunca precisou ser ensinado. Filho de Oxosse, pôs flecha na mão e no pé, virou capoeira. "Nesse mundo camará, mas não há, mas não há, mas não há quem me mande". O mundo é o meu quintal, e quem manda na minha mata sou eu - imagino ele dizendo isso. Folgado, metido, abusado e tão querido por onde passa, esse nego malandro sabe convencer, no grito ou no papo, pra no fim tudo ser um pouco do seu jeito. Falando assim, parece até que ele é diplomático. Porra nenhuma, briga brincando, brinca brigando e não queira ver ele de outra maneira. E outra, não mexa no seu chapéu. Homem que é homem sabe que não se mexe na cabeça dos outros que os lá de cima logo gritam: Perá lá, que aí mando eu!

Como faz pra conhecer ele? Primeiro te digo cuidado, maneira nas piadas e relaxa nas risadas. E pra encontrar com ele é só sair andando pelas ruas, passar nas curimba, nos samba e nos pagodes. Segue o toque de tambor. Ele é filho do vento, tá onde o vento for.